Ads

Destaques

Tecnologia do Blogger.

Postagem em destaque

Robert Hooke e outros cientistas: A Teoria Celular

Robert Hooke (1635-1703) foi um cientista que nasceu em uma época de largos horizontes intelectuais na Idade Média. Possuía um apurad...

Arquivos

Lorem 1

Technology

Circle Gallery

Shooting

Racing

News

Lorem 4



A grande parte dos constituintes moleculares dos organismos vivos é composta de átomos de carbono unidos a outros átomos de carbono, de hidrogênio, oxigênio e nitrogênio. As propriedades especiais destas ligações do carbono permitem a formação de uma grande variedade de moléculas.Caracterizar essas moléculas seria um trabalho herculano se não fosse o fato de que as macromoléculas (proteínas, ácidos nucléicos, polissacarídeos) são compostas de um pequeno conjunto de unidades monoméricas (aminoácidos, nucleotídeos, monossacarídeos) comuns. A maioria dessas unidades monoméricas exerce mais de uma função nas células vivas: os nucleotídeos servem não apenas como subunidades para os ácidos nucleicos, mas também como moléculas transportadoras de energia. Os aminoácidos são subunidades das moléculas protéicas e também precursores de neutrotransmissores, pigmentos e muitos outros tipos de biomoléculas. 

Destas considerações podemos destacar alguns dos princípios da lógica molecular da vida:
  • Todos os organismos vivos constroem moléculas a partir dos mesmos tipos de unidades monoméricas.
  • A estrutura de uma macromolécula determina sua função biológica específica. 
  • Cada gênero e espécie são definidos por seu conjunto distinto de macromoléculas.

No curso da evolução biológica, um dos primeiros desenvolvimentos supõe-se ser o aparecimento de uma membrana lipídica que envolveu as moléculas hidrossolúveis da célula primitiva, separando-as do meio ambiente e permitindo que elas se acumulassem em concentrações relativamente altas. 

Embora a composição de um organismo possa ser quase constante ao longo do tempo, a população de moléculas no interior de uma célula ou de um organismo está bem longe de ser estática. As moléculas são sintetizadas e depois desmontadas por reações químicas contínuas, envolvendo um fluxo constante de massa e energia através do sistema. As moléculas de hemoglobina que, nesse momento estão carregando oxigênio de seus pulmões para o seu cérebro, fora sintetizadas no mês passado: daqui a um mês, elas serão degradadas e substituídas por novas moléculas. A glicose que você ingeriu em sua última refeição está agora circulando em sua corrente sanguínea; antes do dia terminar, essas moléculas terão sido convertidas em alguma outra substância, como dióxido de carbono ou gordura. A quantidade de hemoglobina e glicose no sangue permanece quase constante porque a velocidade de síntese ou a ingestão delas equilibra-se com a velocidade de quebra, consumo ou conversão.

 A energia é um tema central em bioquímica: as células e os organismos dependem de um suprimento constante de energia. O armazenamento e a expressão da informação consomem energia: sem essa energia as estruturas ricas em informação poderiam se tornar desordenadas e sem significado. As reações de síntese que ocorrem no interior das células também requerem o fornecimento de energia, bem como uma bactéria em movimento, no acender da luz de um vaga-lume, na descarga de um peixe elétrico. As células desenvolveram, durante a evolução, mecanismos altamente eficientes para capturar a energia do Sol, ou de extraí-la de alimentos, e transferir para os processos que dela necessitam.

A síntese contínua de componentes requer trabalho químico: o acúmulo e a retenção de sais e de vários compostos orgânicos que vão contra um gradiente de concentração envolvem um trabalho osmótico: a contração de um músculo ou o movimento do flagelo de uma bactéria representa trabalho mecânico. A bioquímica examina esses processos pelos quais a energia é extraída, canalizada e consumida; assim é essencial entender os princípios fundamentais da bioenergética: transformações ou trocas de energia das quais todos os organismos vivos dependem.

Para reações que ocorrem em solução, podemos definir um sistema como todos os reagentes e produtos, o solvente e a atmosfera próxima, ou seja, tudo o que está dentro de uma região definida do espaço. Juntos, o sistema e seus arredores, constituem o universo. Se o sistema não troca matéria nem energia com seus arredores, ele é dito ser fechado. Se o sistema troca energia mas não troca matéria com seu meio, ele é dito sistema isolado; se troca ambas energia e matéria com o meio, ele é um sistema aberto.

Um organismo vivo é um sistema aberto já ele troca matéria e energia com seu meio. Organismos vivos usam duas estratégias para captar energia: (1) eles obtêm combustíveis químicos da vizinhança e extraem energia oxidando-os; ou (2) eles absorvem energia da luz solar.
  • Organismos vivos criam e mantém suas estruturas complexas e ordenadas usando energia extraída de combustíveis ou da luz solar.
A primeira lei da termodinâmica foi desenvolvida a partir dos conhecimentos físicos e químicos, mas é totalmente válida para sistemas biológicos: ela descreve o princípio da conservação de energia.
  • Em qualquer mudança física ou química, a quantidade de energia total do universo permanece constante, embora a forma de energia possa mudar.
  • As necessidades energéticas de todos os organismos provém, direta ou indiretamente, da energia solar.
  • Todos os organismos vivos são interdependentes, trocando entre si energia e matéria por meio do meio ambiente.
O tema central em bioenergética é o modo pelo qual a energia do metabolismo de combustíveis ou da captura de luz é acoplada a reações que requerem energia. Reações químicas podem ser acopladas assim que uma reação libertadora de energia promove uma reação que requer energia. Reações em sistemas fechados ocorrem espontaneamente até que o equilibro seja alcançado. Quando um sistema está em equilíbrio, a velocidade de formação do produto é exatamente igual à velocidade na qual o produto é convertido em reagente.

No interior das células, todas as reações químicas ocorrem devido à presença de enzimas: catalisadores que são capazes de aumentar enormemente a velocidade de reações químicas específicas sem serem consumidos no processo. As enzimas agem diminuindo a barreira de ativação entre o reagente e o produto, ligando-se às moléculas dos reagentes no estado de transição e acelerando a velocidade da reação. As enzimas são proteínas, com um número muito pequeno de exceções, como moléculas de RNA. Cada proteína enzimática é específica para a catálise de uma determinada reação, e cada reação é catalisada por uma enzima diferente. Cada célula, então, requer milhares de tipos diferentes de enzimas. 

As milhares de reações químicas enzimaticamente catalisadas são funcionalmente organizadas em muitas sequências diferentes de reações consecutivas chamadas vias, nas quais o produto de uma reação se torna o reagente para uma próxima reação. Algumas dessas sequências de reações degradas nutrientes orgânicos em produtos finais simples, de forma a extrair energia química e convertê-la em uma forma utilizável pela célula. Juntos, esses processos liberadores de energia livre são designados catabolismo. Outras vias enzimaticamente catalisadas parem de moléculas precursoras pequenas e as convertem em moléculas mais complexas e maiores, incluindo proteínas e ácidos nucleicos. Essas vias sintéticas requerem invariavelmente a adição de energia, e quando consideradas em conjunto representam o anabolismo. Esse conjunto de vias constitui o que chamamos de metabolismo. O ATP é o mais importante elo de conexão entre os componentes catabólicos e anabólicos dessas vias, sendo ele o transportador universal de energia metabólica.


Resumo de:
LEHNINGER, Princípios de Bioquímica.

- -


Há bilhões de anos atrás, o universo nasceu com uma explosão que lançou em todo o espaço milhares de partículas subatômicas quentes e ricas em energia. Dentro de segundos, formaram-se os elementos mais simples (hidrogênio e hélio). À medida que o universo expandia-se e esfriava, as galáxias se formaram condensando-se sob a força da gravidade. Dentro delas, grandes estrelas se formaram, que depois exploram em supernovas, liberando energia necessária para fundir os núcleos atômicos mais simples com os elementos mais complexos. Dessa forma, nasceram os elementos químicos presentes na Terra. Aproximadamente há quatro bilhões de anos originou-se a vida, os microorganismos simples capazes de extrair energia de compostos orgânicos ou da luz solar, que eles usaram para formar uma valiosa gama de biomoléculas que interagem entre si para dar aos organismos suas propriedades que lhe são características. 

Todos os organismos vivos são compostos de moléculas destituídas de vida. Mas o que os distingue dos objetos inanimados? Primeiro é o seu grau de complexidade química e de organização. Eles possuem estruturas celulares internas e contém uma grande variedade de moléculas complexas. Em contraste com isso, toda a matéria não-viva presente na Terra é composta de materiais simples. Segundo, os organismos vivos extraem, transformam e usam a energia que encontram no meio ambiente, sendo eles usualmente nutrientes químicos ou energia solar. Essa energia é utilizada na manutenção das estruturas internas desses indivíduos, como trabalhos mecânicos, químicos, osmóticos e de vários outros tipos. Em oposição, a matéria inanimada não se utiliza desse tipo de recurso, tendendo a se degenerar em um estado mais desordenado estado, alcançando um equilíbrio com sue meio ambiente. O terceiro e mais característico atributo dos organismos vivos é a capacidade de auto-replicação

Cada componente de um organismo vivo tem uma função específica. Isso se aplica não apenas às estruturas macroscópicas, como folhas e caules, mas também para as estruturas microscópicas, como células, seus núcleos, etc. Até mesmo os compostos químicos individuais existentes nas células têm suas funções específicas. Mas se os organismos vivos são compostos de moléculas intrinsecamente inanimadas, como podem essas moléculas exibir a extraordinária combinação de características que chamamos de vida? O objetivo básico da ciência bioquímica é mostrar como as coleções de moléculas inanimadas constituintes dos seres vivos interagem entre si para perpetuar a vida animada.

Organismos vivos são enormemente diferentes em suas aparências e funções. Até o momento, pesquisas bioquímicas relevam que todos os organismos são notadamente semelhantes em níveis celular e químico. A própria Bioquímica se ocupa de descrever em termos moleculares as estruturas, os mecanismos e os processos químicos compartilhados por todos os organismos, e fornece os princípios organizacionais que fundamentam a vida em todas as suas diferentes formas.

Resumo de:
LEHNINGER, Princípios de Bioquímica.
- -



Anatomia é a ciência que estuda a constituição dos seres vivos organizados, de forma micro e macroscópica. A partir da descoberta do microscópio, desenvolveram-se ciências especializadas, embora todas elas possam se encaixar como ramos da Anatomia, como por exemplo a Citologia (estudo das células), a Histologia (estudo dos tecidos e de suas organizações na formação de tecidos) e a Embriologia (estudo do desenvolvimento dos indivíduos). Ainda mesmo podemos mencionar a Anatomia Radiológica, que estuda os órgãos nos seres vivos ou em cadáveres através de Raio X, Anatomia Antropológica, que se ocupa de tipos raciais, Anatomia Biotipológica ou Constitucional, que se ocupa dos tipos morfológicos ou constitucionais, Anatomia Comparativa, que se refere à comparação de órgãos de espécies diferentes de seres vivos, e Anatomia de Superfície, sendo esse o estudo dos relevos morfológicos na superfície do corpo dos seres.

ana = em partes
tomein = cortar

 As variações anatômicas são diferenças morfológicas entre os indivíduos, que podem se apresentar externamente ou em qualquer um dos sistemas do organismo, sem que isso traga prejuízo funcional para o indivíduo. Neste termo se encaixam diferenças externas, como a aparência física, até diferenças internas, como a forma de órgãos sendo levemente diferenciada. Partindo desse princípio, as discrepâncias que perturbam a funcionalidade de parte ou partes do indivíduo é chamada de anomalia, como por exemplo um indivíduo que tem um dedo à mais na mão direita. Se essa anomalia for tão acentuada a modo de deformar profundamente a construção do corpo de um indivíduo, denomina-se monstruosidade. Podemos citar como exemplo a agenesia (não formação) do encéfalo.

As variações anatômicas que diferem os indivíduos são as relacionadas à idade, ao sexo, raça, tipo constitucional, evolução, etc. Estes são, em conjunto, os denominados fatores gerais de variação anatômica.

A — Idade é o tempo decorrido ou a duração da vida. Muito notáveis modificações ocorrem ao decorrer desse período em todas as fases 
a) Fase intra-uterina
     1) ovo
– quinze primeiros dias
     2) embrião – até o fim do 2° mês
     3) feto – até o 9° mês
b) Fase extra-uterina
     4) recém-nascido – até o 1° mês após o nascimento
     5) infante – até o fim do 2° ano
     6) menino – até o fim do 10° ano
     7) pré-púbere – até a puberdade
     8) púbere – dos 12 aos 14 anos, relacionados à maturidade sexual
     9) jovem – até os 21 anos no sexo feminino e 25 anos no sexo masculino
     10) adulto – até a menopausa (castração fisiológica natural)
     11) velho – além dos 60 anos.

B — Sexo É o caráter da masculinidade ou feminilidade. É possível reconhecer órgãos diferentes em cada um deles, graças a características especiais até mesmo fora da esfera genital.

C — Raça É a denominação conferida a cada grupamento humano que possui características físicas comuns, externas ou internas, pelos quais se distinguem dos demais. Por exemplo, representantes das raças Brancas, Negras, Mestiços, etc.

D — Biótipo É a resultante da soma das características herdadas e das características herdadas por influência do meio. Os biótipos constitucionais existem em cada grupo racial.  Na grande variabilidade morfológica humana há possibilidade de reconhecer o tipo médio e os tipos extremos, naturalmente também os mistos. Os dois extremos são chamados de longilíneo e brevilíneo, e a comparação dos mesmos demonstram tanto diferenças morfológicas internas como externas. Os longilíneos são indivíduos magros, em geral altos, com pescoço longo, tórax muito achatado ântero-posteriormente, com membros longos em relação à altura do tronco. Os brevilíneos são indivíduos atarracados, em geral baixos, com pescoço curto, tórax de grande diâmetro, membros curtos em relação à altura do tronco. Os mediolóneos apresentam características intermediárias.

E — Evolução Influencia o aparecimento de diferenças morfológicas no decorrer dos tempos, como demonstrado pelo estudo dos fósseis. 

Além das variações individuais e daquelas que são condicionadas pelos fatores gerais de variação acima referidos, notáveis modificações ocorrem, em tempo mais ou menos curto, pela cessação do estado da vida que, na maioria  dos casos, é causada por processos mórbidos. Assim, o estudo do material cadavérico deve ser feito com cautela, especialmente se possível usando radiografias, radioscopias, etc. Deve-se ter em mente que o que se vê nos cadáveres não corresponde, exatamente, ao que é encontrado in vivo, principalmente com referência à coloração, consistência, elasticidade, forma, e até mesmo posição ocupada pelos elementos anatômicos.

Resumo de:
DANGELO; FATTINI. Anatomia Humana Básica.
- - -
 

Se a análise de uma personagem em particular ao longo de uma peça acaba conduzindo `uma visão geral, outro tanto se pode afirmar com respeito à ação. Sem dúvida, a ação envolve mais a totalidade de uma peça do que a personagem isolada. Em se tratando da ação ou do enredo, mal se pode falar em retirá-la do meio, tão intrínseca ela está: nomear a ação ou o enredo é praticamente visualizar a peça como um todo. O analista do texto teatral deve ter em mente essa globalidade a fim de superar as dificuldades que se lhe interpõem.

O estudo de um enredo implica as personagens e os outros componentes de uma peça. Já foi dito que uma peça é inexistente sem enredo, e só por exceção encontramos peças destituídas de intriga, como o teatro naturalista e o simbolista. Não pode deixar de haver enredo e ação porque é através dela que o dramaturgo exprime suas opiniões e sua concepção de mundo. Portanto, a ação é considerada pedaço imprescindível do teatro. Passeando um pouco no ramo da psicologia, diria-se que o espectador ou o leitor busca o enredo justamente porque procura encontrar na peça um sedativo ou um escape para as frustrações diárias.

A aplicação de um principio racional ao caos do irracional. Logo, qualquer enredo tem um caráter dualista: compõe-se de matéria violentamente irracional, mas a "composição" é em si racional, intelectual. O interesse num enredo, ainda o mais rudimentar, é interesse de ambos esses fatores e, talvez ainda mais, na sua interação mútua.

Mas o que deve fazer um comediógrafo para reter o interesse dos espectadores? Esse problema constitui o cerne do problema da análise da ação. O escritor de teatro tem na mão dois componentes para atiçar a atenção do espectador e do leitor, que são a surpresa e o suspense. Dessa forma, a expressão "um enredo engenhoso" se refere ao bom uso e balanceamento desses dois elementos.

Quanto à situação dramática, diz respeito às circunstâncias em que é dado às personagens agir ou nas quais estão inscritas; ou às circunstâncias que se estabeleceram antes da peça começar. No primeiro caso, a situação dramática consiste na tensão estabelecida entre as personagens no curso da ação. No segundo caso, trata-se da "história prévia", a situação dramática que antecede a investida das personagens no contexto da peça. Na situação interna, que é o primeiro caso, as personagens continuam a gozar do privilégio da vontade e da liberdade de opção. Na situação dramática externa, o segundo caso, as personagens mergulham em circunstâncias alheias à sua vontade, parcialmente ou não.

O analista, abstraindo a situação dramática do resto da peça, pode examiná-la como se dando antes ou depois dela, ou fundindo as duas hipóteses. Se a situação dramática que antecede a peça parecer ser isenta de tensão e tender a qualquer coisa perto do melodrama (a história da jovem seduzida e abandonada, o filho enjeitado, etc.), a situação dramática que a sucede e que o desenrolar da peça nos revela, assume elevada intensidade.

Entendemos que toda peça de teatro, semelhante à qualquer obra literária, apresenta dualismo de funções: entreter, é a primeira delas, intimamente ligada com o caráter lúdico da Arte; forma de conhecimento é a segunda, também inerente à Arte. Visto que é obviamente menos relevante a primeira, nos foquemos na segunda.

A verdade é que buscamos distração na leitura de uma peça, mas ao mesmo tempo saber como o seu autor concebe o mundo e os homens, pois seu modo de ver nos ensina a melhoras nosso próprio e a realidade circundante: o impacto do teatro, por ser direto, ainda quando lido, promove o nosso autoconhecimento e o conhecimento da conjuntura que nos rodeia. É que, de certa forma, o dramaturgo consegue exprimir entre a ação e a personagens o que ele está "vendo", nós é que seríamos, realmente, os protagonistas da peça, mas protagonistas privilegiados por terem o prazer de sentar numa cadeira para ler a peça ou assisti-la sem maiores compromissos. E após o término da leitura ou da apresentação, sentimos como se nos olhássemos num espelho.

O estudante deve lembrar-se de que o pensamento surge implícito na ação e no diálogo, precisamente como na vida diária. O dramaturgo, em vez de dissertar, morta. Ao estudante cabe apontar, no âmago de umas e outras, o pensamento recôndito e subentendido. Quanto mais o pensamento se funde na ação e no diálogo, mais convincente e perturbador se torna; e quanto mais externo à ação e à fala, menos convincente e mais malograda é a peça.


Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -
 


Para fins de análise, podemos isolar uma personagem de uma peça e considerá-lo por si só. Certamente ela transporta consigo sua ação, porque é somente nela que ela ganha existência. Apesar disso, o foco se volta para sua personalidade como um todo. Nesse caso, a análise desvendará a personagem evoluindo ao longo da peça sem importar a sua macroestrutura. Há três vias principais: o que o personagem revela sobre si mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito. Antes de entrar no âmbito da análise, entretanto, é necessário esclarecer que o analista não deve criar expectativas sobre suas ações com base em seus semelhantes, sob pena de torcer os fatos. É que, dadas as próprias limitações do teatro, a autonomia "real" das personagens é muito relativa, ao contrário da ilusão que oferece, ao dispensar o mediador em sua apresentação ao leitor ou ao público. O mediador, ou o autor, embora se oculte o mais que possa, sempre conduz as personagens não como marionetes, mas como representações de que se vale para se comunicar. Deve-se alertar contra a falsa ideia de realismo que a personagem pode transmitir, pois a sua personalidade nos é mostrada com os meios à mão para encarnar suas intuições. A personagem não é totalmente livre, conquanto não seja mero boneco à mercê do escritor: não é cópia fiel dos seres da carne e ossos, mas também não é projeção irracional.

O primeiro modo pelo qual se conhecemos uma personagem é o que ela "revela sobre si mesma", manifestando-se por meio de confidências á parte e/ou monólogos. Ambos são caracterizados pela revelação sorrateira de informações sobre si mesmas, mas são dotados da diferença clara: nas confidências há um interlocutor, o que não acontece nos monólogos. Um, mais tradicional (confidência), e o outro, mais moderno (monólogo), mas serão sempre ocasionais: do primeiro o comediógrafo não pode abusar, o segundo só podemos admiti-los em casos especiais. O "à parte" (momento aquele em que a personagem fala sozinha, fala "à parte) foi ultrapassado pelo teatro moderno: no teatro, a personagem ignora um jeito concreto de ser fazer conhecer, pelo que manifesta de si própria. E sabiamente ignora-o pela razão de que ela está lançada numa situação caracterizada pela ação concentrada, onde não há pausas para explicação.

Aqui está o motivo pelo qual entramos no conhecimento do que a personagem faz. Mas isso implica a ação da peça. Abrangendo os estudos do que a personagem faz, podemos catá-las individualmente e analisar a sua ação. Todavia, como sua ação somente se figura com a ação de outras personagens e ao que elas fazem, é bem natural que os analistas se detenham nos interlocutores e suas respectivas ações, sempre no intuito de focar a personagem escolhida. Portanto, a análise de um protagonista engloba os terrenos vizinhos onde reinam os demais personagens em função do primeiro.

De outro ângulo, interpretar o universo das relações sociais em que se move a personagem analisada nos dá a chance de entrar no terceiro modo de se analisar uma personagem, pelo exame do "que dizem a seu respeito". Se levarmos em conta que as opiniões das outras personagens também implicam em ação, é verdadeiro dizer que é possível conhecer uma personagem pelo que dizem dela e por como as demais se posicionam e se comportam; estes funcionariam como superfície de reflexão, algo como um espelho que duplicaria do protagonista. E através da imagem composta podemos gradativamente ir caracterizando a personagem.

Equacionados os meios de caracterizar uma personagem, podemos agora saber a que nos leva tal procedimento. O conhecimento e exploração nesse âmbito nos leva a conhecer uma personagem enquanto personagem, não quanto pessoa. Isto é, as qualidades reveladas numa representação teatral são da personagem, não as que teria se fosse em carne e osso. São as quatro qualidades a serem observadas numa personagem: utilidade, propriedade, verossimilhança e consistência.

Partindo da premissa de que cara gênero ou espécie teatral tem um tipo diferente de personagem, entendemos imediatamente as quatro qualidades assinaladas. Uma tragédia demanda certas personagens que não seriam bem alocadas em uma farsa, e vice versa. Temos de ver, ainda, se as personagens têm as propriedades necessárias na peça, pois não basta que sejam úteis apenas quando enquadradas no gênero teatral. Do contrário, seria nivelar todas as personagens que fossem úteis, por exemplo, nas comédias, quando obedecem uma hierarquia. Daí se depreenderia que o afastamento entre elas está na razão direta de se parecerem ao máximo com a vida cotidiana, com quem está como espectador.

A quarta qualidade diz respeito à coerência, que se manifesta através da ação e do diálogo ao longo dos conflitos que orientam a peça. Se a coerência se impõe por meio de situações diversas ou embaraçosas, as personagens são úteis, verossímeis e apropositadas. Logo, o dramaturgo consegue convencer e alcançar os objetivos propostos.


Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -


A epopeia, a poesia trágica, a comédia, o ditirambo, a maior parte da aulética e da citarística são consideradas imitações.
  • Epopeia: poema de longo fôlego acerca de assunto grandioso e heroico.
  • Ditirambo: nas origens do teatro grego, canto coral de caráter apaixonado (alegre ou sombrio), constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, ou corifeu, e de outra propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados companheiros do deus Dionísio, em honra do qual se prestava essa homenagem ritualística.
  • Aulética: arte de tocar flauta ou aulo.
  • Citarística: arte de tanger ou tocar cítara.
Existem diferenças de acordo com essas formas de expressão: elas variam no modo, no meio e no objeto de se expressar. Essas artes fazem imitações considerando o ritmo, a linguagem, a harmonia, etc., empregados separadamente ou em conjunto. Apenas a aulética e a citarística fazem uso do ritmo e da harmonia, mas também a dança se utiliza desse segundo: é por atividades rítmicas que os dançarinos exprimem suas emoções.
A epopeia faz uso do verso sem rima, mesclando métricas diferentes ou se atendo a uma só. 
Não são versos poéticos os que são assuntos fora da esfera da literariedade, como Matemática ou Física.
Há artes que se utilizam de todos os elementos supracitados, isto é, ritmo, canto, metro: assim procedem os ditirambos, os nomos, as tragédias, as comédias. A diferença entre eles se dá no emprego desses elementos, em conjunto ou separados.
  • Nomos: composições vocais, geralmente acompanhadas pela cítara ou pelo aulo, que obedece a determinados padrões fixos dos quais se atribuía influência mágica, e que era destinada a louvar aos deuses, ou a celebrar certos acontecimentos.

A imitação se aplica aos atos das personagens, que podem ser boas ou ruins de acordo com sua tendência para a virtude ou para o vício. Logo resulta-se que as personagens ou são melhores ou piores que nós. É possível encontrar e discernir esse caráter mesmo nas artes não cantadas, como as epopeias de Homero que pinta o homem melhor do que ele realmente é.
É também essa diferença que distingue a tragédia da comédia: um pinta o homem pior do que ele é e o outro melhores do que é na realidade. 

Existe uma terceira diferença na maneira de imitar cada um dos modelos: é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações em uma narrativa simples, seja introduzindo uma personagem ou fazendo-se o autor um narrador-personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens autônomos.
A imitação é realizada segundo esses três aspectos, como foi dito em princípio: os meios, os objetos e a maneira.
Algumas pessoas chamam de dramas as obras de Sófocles e Homero, ambas retratando o homem melhor do que ele é em realidade, e ambas com personagens que se sobressaem no enredo e vão de encontro aos espectadores, dando a ideia de que são autônomos.


Resumido de:
ARISTÓTELES. Arte Poética.
- -

 
Existem três componentes fundamentais a serem analisados em uma peça: a ação, o cenário e o diálogo. Quando texto literário, apenas são levados em conta o enredo, que corresponde à ação, e as personagens. Com base no que foi dito por Aristóteles em sua Poética, ainda podia se considerar o pensamento, o conteúdo, a tese, a "mensagem", como um dos ingredientes de toda peça de teatro. Na verdade, tudo numa peça, desde o tempo até a encenação, lhes está fatalmente associado. Se pensarmos apenas no texto literário, vemos que ele carece da representação.

São as duas forças motrizes da peça teatral: o enredo e as personagens, e tudo o mais está condicionado. Se observarmos mais afundo, veremos que o enredo e as personagens têm entre si uma inquestionável relação, fazendo-os quase uma só entidade. Vale dizer, então, que o enredo somente se organiza com as personagens, de forma que sem elas não haveria enredo. E como sabemos que sem enredo não há peça, as personagens guardam consigo a condição básica para uma peça. Por outro lado, as personagens apenas existem em função do e no enredo. 
 
Embora entre o enredo e as personagens exista uma reciprocidade equivalente a uma identidade, os estudiosos se perguntam qual dos dois é o mais importante. Como sempre, a questão levanta dúvidas que são difíceis de sintetizar, mas, seja como for, é um problema aberto a controvérsias de várias ordens. Para Aristóteles, como é visto, o enredo corresponde à parte mais relevante de uma peça de teatro, pois em ação se transforma ou se revela tudo que é de mais valioso e significativo para o homem: a felicidade ou a infelicidade. Decerto o filósofo somente podia defender a predominância do enredo sobre as personagens se aceitarmos que nem tudo se manifesta na ação, ou ainda, que o mais profundo de cada pessoa constitui a vida interior secreta, inacessível e inexprimível, o postulado aristotélico perde um tanto de seu valor.
 
Na verdade, há peças em que se predomina a ação e em outras a personagem, outras o pensamento. No primeiro caso, as personagens aparecem como fatores de enredo, quase destituídas de identidade. No segundo, a ação semelha consequência dos caracteres em presença, como no teatro shakespeariano. Na última, encontram seu campo eleito no teatro experimental de nossos dias. Entenda-se, também, que tudo é uma questão de grau, uma vez que qualquer uma dessas configurações não elimina a outra, além de que a prevalência da ação sobre os protagonistas não significa que as outras devem ser desprezadas pura e simplesmente. É tudo uma questão de ângulo da análise.
 
Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -
 
 
Semelhante com o plano da prosa e da ficção, em matéria de teatro pode-se falar em análise macroscópica, ou macroanálise, e análise microscópica, ou microanálise. A primeira se ocupa da obra como um todo, objetivando examinar a estrutura total, ao passo de que a segunda busca estudar estruturas menores ou secundárias.
 
De modo grosseiro, os atos convencionais de uma peça correspondem a exposição, desenvolvimento e desenlace, isto é, cada ato se coloca num ponto da curva dramática e possui uma carga ético-emocional própria, as mais das vezes diversas da dos outros. Os atos de uma peça não ostentam a mesma intensidade, podendo-se dizer que obedecem a um ritmo crescente. Essa mesma hierarquia se observa nas cenas e nos quadros, e dessa forma as cenas se alinham num ritmo ascendente dentro do ato da mesma forma que os quadros ascendem dentro de uma cena. Obviamente essa simples arquitetura pode ter inúmeras variações, mas uma peça bem estruturada tende a orientar-se nessa perspectiva.

Dessa arquitetura básica resultam aspectos que não podem fugir ao analista interessado em dramaturgia: deve-se perguntar como cada autor fez e coordenou a Exposição: isto é, como se dá a conhecer a situação inicial das personagens e circunstâncias, em conjunto com a "história prévia". Logo em seguida deve-se observar os "momentos excitantes" e os "momentos de retardamento" que parecem reter ou desviar a catástrofe. Mais ainda, é necessário se observar a construção, quais as cenas principais e secundárias, onde estão e como se preparam os momentos culminantes, e como se articulam entre si.
 
A análise de tais componentes macroestruturais devem despender a necessidade de se estudar os componentes microestruturais. Na verdade, os primeiros podiam ser considerados extrínsecos e os últimos intrínsecos. Os últimos resumem-se no ato, na cena, no quadro, na "situação" e ação. O pensamento corresponderia a um aspecto à parte, vinculado tanto à análise microscópica quanto macroscópica. 
 
Relativamente, os três primeiros compartimentos podem ser estudados separadamente, como estruturas completas em si, dotadas de começo, meio e fim. Um ato, uma cena ou quadro será bem mais articulado, atingirá níveis mais elevados de tensão dramática quanto mais bem utilizados forem os elementos fundamentais do teatro. 
 
Entenda-se, contudo, que nem por constituir uma unidade estrutural e implicar a harmonia no conjunto, o ato, a cena e o quadro merecem igual tratamento. Se o quadro corresponde a uma "tomada", e o ato, a uma série dinâmica de cenas e de quadros, imediatamente se conclui que o procedimento analítico não pode ser o mesmo. O analista há de ter em mira a ordem em que aparecem as cenas dentro do ato e a substância dramática de cada uma. Em suma: examinará o conteúdo de cada cena e o seu lugar dentro do ato, e depois procederá com o último da mesma forma, tendo em vista o todo da peça. Ao analista cabe descobrir e investigar todos os meios de que o autor lança maio para convencer o leitor (ou espectador), ou seja, para alcançar coerência e "verdade" na máxima concentração permitida pelo teatro.
 
 Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -


São duas as principais formas de expressão cênica: a comédia e a tragédia, de que se originam tipos intermediários, como o melodrama, a farsa e a tragicomédia. A tragédia consiste numa representação "séria", grave, tensa, em que se jogam destinos no ápices de suas possibilidades, lançadas em situações limite, que não raramente arrastam à morte. A comédia gira em torno do ridículo e da alegria decorrente. Quando o ridículo e a alegria são levados às últimas consequências, temos a farsa. No melodrama, põe-se demasiada ênfase nos aspectos que conduzem à comoção e à lágrima. E a tragicomédia explora a aliança entre a gravidade da tragédia e a rapidez da comédia.

Sendo moldes em que se vazam a matéria teatral, não é raro que se encontrem pontos de contato entre si. Por isso, para a análise, em princípio tanto faz que se trate de uma comédia ou de uma tragédia. Mas, se quisermos aprofundar o conhecimento acerca das técnicas de cada um, devemos analisar separadamente. É que, em verdade, a adequação de todos os ingredientes teatrais varia de peça para peça, conforme se trate de qualquer uma das suas vertentes.

O primeiro aspecto de atenção diz respeito à estrutura de uma peça de teatro. Neste setor, como em muitos outros, os especialistas divergem quanto a nomenclatura empregada e os sentidos que lhe atribuem. Como todo organismo vivo, uma peça monta-se em partes que se justapõem harmonicamente, formando a unidade pretendida. O problema inicial consiste em saber quantas e quais são tais partes, que rótulo podem ostentar e em que subdivisões se fragmentam.
Pondo de lado o enfoque histórico da questão e as peças em um ato, limitamos nosso horizonte visual ao seguinte: as partes principais que integram a peça teatral recebem o nome de atos: inicialmente cinco, mas mais tarde, no século XIX, reduzem-se a três. Caracteriza-me por entre eles haver uma suspensão da representação, baixar a cortina e oferecer-se um intervalo.

As seções em que pode repartir-se um ato recebem a denominação de cenas, cuja caracterização é menos simples que a do ato. Pode-se sugerir que se entenda a cena como cada uma das unidades de ação em que se estrutura o ato. Este evolui segundo um ritmo bem marcado pela ascensão e descensão do ápice dramático: cada "momento" da ação, nos limites do ato, que possua começo, meio e fim, constitui uma cena. Como uma célula dramática dotada de ação completa no seu desenvolvimento, ainda que dependente do ato em que se inscreve, e da peça toda.

A questão se complica um pouco mais quando precisamos subdividir a cena. Poderia se pensar em quadros, que se evidenciariam pela troca de figurantes dentro de uma mesma cena, a entrada e a saída deles, marcando quadros. Como o próprio nome sugere, o quadro daria a impressão de um instantâneo fotográfico, de uma "tomada" cinematográfica, em que as personagens se deslocariam como que esteticamente, isto é, a movimentação das personagens não influenciariam no status global da peça. Na prática se torna um pouco mais complicado delimitar cenas e quadros, mesmo porque em ambos a troca de personagens é evidenciada.

Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -


A primeira grande questão da análise do texto teatral é saber se o mesmo se integra ao núcleo de textos literários. O crítico literário ou o professor de Literatura tende a deixar de fora esse tipo de texto, onde apenas dominariam os poéticos e a prosa da ficção. Em outro lado, os críticos teatrais ou professores de Teatro se recusam a abranger seus horizontes e estudar outros tipos de textos. Ao observar com mais entusiasmo, vemos que essa divergência tem fundamentos: o Teatro participa de expressões literárias na medida em que adota a palavra como veículo de comunicação, mas extrapola a linha tênue quando sobe com o texto ao palco. Sabemos que a peça só alcança sua real razão quando encenada, então, diante disso, a conclusão é imediata: o Teatro caracteriza-se pela ambiguidade, por um hibridismo que deve sempre ser levado em conta ao analisar uma peça.

O Teatro está intimamente vinculado às demais Artes, como as Artes Plásticas (que colaboram para o cenário), a Música, a Coreografia, e está condicionada a vários recursos mecânicos como a luz, o palco giratório, a projeção de slides ou fragmentos cinematográficos, etc. Visto que somente o texto é o que importa para a análise, as interferências feitas pelas demais artes são postas de lado. Acontece, porém, que o leitor deixará de assimilar os conteúdos de uma peça se não recorrer à imaginação. Ora, uma narrativa qualquer implica que o leitor ponha em funcionamento seus dotes de fantasia, mas os vários auxiliares que lança mão o ficcionista (como a dissertação, a narração e a descrição) lhe simplificam essa tarefa. O leitor de Teatro, tendo carência desses auxiliares, vê-se obrigado a movimentar todas as turbinas de sua imaginação, sob pena de permanecer impermeável ao texto.

Assim, o leitor arquiteta na imaginação um palco em que transcorre a fábula da peça. Ao fazê-lo, estará apto a observar a segunda etapa da análise do texto teatral, referente à sua representabilidade. Em verdade, essa análise ultrapassa os limites do plano de análise e penetra no terreno de seu julgamento, mesmo porque a discussão da representabilidade de um texto teatral parece extravasar o território literário e cair naquele em que o Teatro se afigura arte autônoma.

Um texto destinado à representação pode ser literariamente bom e teatralmente mau, e vice-versa. Mas vale lembrar que a qualidade de uma peça não depende da sua representabilidade: sua qualidade nos é dada por um conjunto de fatores de ordem estética e ética, pela totalidade de suas características e não por apenas uma delas.

Por isso, a análise do texto teatral foca-se no texto como Literatura. Porém, o leitor não pode esquecer em momento algum que o texto teatral é diferente de um conto ou de um romance: diverso não apenas na sua aparência formal, como também em sua estrutura (estrutura essa que lhe advém precisamente de seu caráter teatral, ou seja, um texto destinado à representação). A análise também se deterá em tais pormenores estruturais (atos, cenas, quadros, etc.) sempre no encalço da compreensão de todos os seus elementos fundamentais. Nota-se que esses elementos são considerados em níveis de texto, não do espetáculo em que podem resultar.

Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
- -


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. 9.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1923.
- -

Nasceu, na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito. Porém - diz um dr. Mereje - não foi o primeiro. Em São Paulo, há 7 anos, nasceu também uma criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração postiço."

Como se fora um coração postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos, diria:

“...a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam...”

Madrugada paulistana. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os sinais das esquinas - vermelhos, amarelos, verdes - verdes, amarelos, vermelhos - borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada. Vamos andar pelas praças desertas, onde as estátuas molhadas cabeceiam de sono. Menino do coração fora do peito, os primeiros bondes estrondam. Vamos ouvir de perto esses barulhos da madrugada.

6 horas. O coração fora do peito bate docemente. 7 horas - o coração bate. .. 8 horas - que sol claro, que barulho na rua! - o coração bate...

9 horas - morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem morrer, menino. O dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho engraçado! - diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que é isso, "seu" paulista? Mas o menino do coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: "o dr. Mereje disse que..." - mas não conta. Está rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz:

Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse â luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança...

Os anjinhos todos do limbo perguntaram:

Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer?

O anjinho respondeu:

Eu vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa.

Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:

E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não tem coração nenhum. "E quando eu nasci, o dr. Mereje olhou meu coração livre, batendo, feito uma rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "parece um coração postiço". Os homens todos, minha gente, são assim como o dr. Mereje.

Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema, e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossegado, dr. Mereje!


BRAGA, Rubem. Para gostar de ler. 2.ed. São Paulo: Editora Ática. 2010
- -


A criação da pólis deu-se aproximadamente no ínterim dos séculos VIII e VII, quando a vida social foi remodelada para padrões que formaram a base da civilização ocidental. A grande mudança acabou por acarretar a formação de uma rica cultura grega, porque agora todos os cidadãos estavam entrosados como uma massa única que transpôs-se no demos da pólis. Essa nova cultura foi modificando os costumes e a convivência desses povos, alterando assim o código de conduta da vida em sociedade. A cultura foi sendo repassada hereditariamente através das mais diversas práticas sociais, que funcionavam como ritos de aprendizagem, conservação e transformação da cultura. Essa comunicação se dava através do sistema de signos, que permeavam a comunicação de homem para homem. Os signos, que podiam ser gestos, sons, palavras, se valiam como objetos de interação que possuíam um caráter ideológico carregado dos valores da sociedade de que um indivíduo é membro. Assim, aprendendo a língua de seu grupo em seu ambiente natural, o indivíduo vai tomando para si um código linguístico-ideológico que equivale à adequação aos costumes da sociedade.



Segundo dados de pesquisa da Unesco, cerca de 3 das 6 mil línguas que existem espalhadas pelo mundo estão em risco de extinção. Uma perda como essa representa um grande buraco na ciência e na cultura, já que uma língua nunca vem carregada apenas de gramáticas simples ou complexas, de palavras ou fonemas únicos. Uma língua é o resultado das convenções e práticas sociais, que por sua vez são disseminadoras naturais da cultura que foi formulada muito antes. Responsável pelas regras que possibilitam a intercomunicação entre indivíduos, é uma tábua de valores que é transmitida à geração seguinte. O desaparecimento de uma língua acarreta a perda total de uma cultura que pode ter levado muito tempo para ser consumada, uma irreparável fresta na história da humanidade que nunca poderá ser recuperada em sua totalidade. Só um falante nativo que tenha a outro falante nativo pode transmitir as verdadeiras características desse bem cultural imaterial tão precioso.


De mais de mil línguas indígenas existentes no Brasil, só 15% perduram até hoje. Desde a colonização brasileira pelos portugueses, a cultura indígena sofreu reviravoltas gritantes que mudaram bruscamente vários aspectos da sua cultura. Revoltas, massacres, escravidão, muitas interferências de outros povos alteraram permanentemente várias crenças e costumes indígenas. Por vezes, muitos povos também foram dizimados, outros tantos foram rejeitados pelos próprios entornos. Pequenas tribos que tinham um dialeto próprio, uma cultura singular, se perderam há muito. Talvez tenha havido muitos que sequer sabemos que tenha existido, talvez até mesmo que ainda não sabem da existência de outros povos não-indígenas. Mas, de uma forma ou de outra, cada povo é um povo. Possui uma cultura divergente ou convergente com outros, uma religião prática, um saber singular, uma língua somente sua.

Angel Corbera Mori, etimologista da área de Línguas Indígenas, esteve em contato direto com o povo Mehinaku, habitantes das margens do rio Curisevo no Alto Xingu, Parque Nacional do Xingu (MT). "Cada língua indígena constitui um sistema de comunicação, como tal tem gramática como qualquer outra língua natural, do contrário os falantes não poderiam se comunicar entre si. Por exemplo, se for pela primeira vez para uma aldeia indígena e essa língua ainda carece de estudos, terei inicialmente que coletar palavras com ajuda dos próprios falantes. Nessa fase inicial todas as palavras serão anotadas em transcrição fonética, constituída de símbolos especiais com base nas letras do alfabeto latino, mas com valores específicos para reproduzir quase exatamente a pronunciação do falante nativo." E ainda completa: "O povo Mehinaku, como acontece com todas as sociedades indígenas, não é plenamente reconhecido pela sociedade nacional. O Brasil, no contexto dos países da América do Sul, é o país onde se concentra a maior diversidade linguística e cultural. Mas a valorização das línguas indígenas pela sociedade nacional, pelo Estado, pelas universidades nacionais e pelos organismos de fomento à pesquisa ainda são muito tênues. Ainda o leigo, e mesmo as pessoas cultas com nível acadêmico de ensino superior, acham que os indígenas falam dialetos ou “gírias”. Chega-se ao absurdo de considerar que uma língua indígena carece de gramática. Sem dúvida, essa visão é etnocentrista. As pessoas acham que só as línguas indo-europeias têm gramáticas."


Os anos vão chegando, as décadas se achegam. A sociedade vai se alterando minuciosa e lentamente conforme ela própria vai se desenvolvendo. O avanço tecnológico que domina o mercado ocupa as mentes mais capitalistas, a religião se esvai na vida rotineira, os credos que deixam de ganhar a importância que um dia já tiveram. A sociedade entra em um processo de segregação sutil, que deixa cada vez mais distantes as classes sociais. Em grandes cidades, essa mudança favorece uma relativa alteração nos costumes e até mesmo nos dialetos dos indivíduos sociais. As classes mais altas e com mais poder aquisitivo são as que mais tem contato com essa globalização de informações, fazendo disso uma porta de entrada para uma mudança sutil que situa novos conceitos e termos técnicos em seu dialeto. Pequenas modificações também são sentidas nas classes com menos acesso a cultura, tornando seu  vocabulário fraco e pobre se comparado aos parâmetros do primeiro.


Também é perceptível a mudança em larga escala, como por exemplo o sotaque e de fragmentos do vocabulário de nativos de diversas regiões brasileiras. Dentro do mesmo estado, milhares de variações são notadas ao falar e ao escrever. Banhados pelo mar de informações que permeia os meios de comunicação, as grandes capitais mais desenvolvidas concentram um número maior de falantes da norma culta, uma consequência do acesso quase irrestrito à informação e das requisições feitas pelo mercado de trabalho. É extremamente necessário no âmbito profissional, já que os indivíduos da sociedade tendem a acompanhar o desenvolvimento do meio em seu torno. Nas cidades menos assistidas, com meios mais rudimentares de comunicação, ou ainda pela ausência de uma cultura que valorize a busca pela informação, o povo que ali habita desvia-se da norma culta e passa a criar novos dialetos, com palavras específicas para diversos significados cotidianos que até mesmo não se encontram no vocabulário culto.


Muitos indivíduos desconhecem os vocábulos das variações dialéticas da sua região. Por vezes, o preconceito é o que motiva essa ignorância quanto ao que pode se chamar de uma cultura embutida dentro da sua própria. Como no desenvolvimento da escrita grega: seus pensadores nutriam um enorme preconceito quanto ás línguas que não eram suas. O conhecimento das línguas dos estrangeiros para eles era dispensável. Consideravam-nas  rudimentares e pejorativas. Deu-se, então, um relativo atraso no desenvolvimento da habilidade de aprendizagem de línguas que não fossem as suas. Um atraso como ele repercute não apenas no conhecimento da cultura e da íngua alheia, mas também nas relações comerciais que podem ser consumadas. Com o desconhecimento dos costumes do povo em questão, pode ser sumariamente impedido o comércio, a interação e a convivência entre ambos.


Referências/Links Externos:
VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego, 2002.
LOPES, Edward. Fundamentos da Linguística Contemporânea, 1935.
Wikipedia.org
Dw.de
Terradagente.com.br
- -

A criação do mundo é um problema que, muito naturalmente, desperta a curiosidade do homem, seu habitante. Os antigos pagãos, que não dispunham, sobre o assunto, das informações de que dispomos, procedentes das Escrituras, tinham sua própria versão sobre o acontecimento, que era a seguinte: Antes de serem criados o mar, a terra e o céu, todas as coisas apresentavam um aspecto a que se dava o nome de Caos — uma informe e confusa massa, mero peso morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas. A terra, o mar e o ar estavam todos misturados; assim, a terra não era sólida, o mar não era líquido e o ar não era transparente. Deus e a Natureza intervieram finalmente e puseram fim a essa discórdia, separando a terra do mar e o céu de ambos. Sendo a parte ígnea a mais leve, espalhou-se e formou o firmamento; o ar colocou-se em seguida, no que diz respeito ao peso e ao lugar. A terra, sendo a mais pesada, ficou para baixo, e a água ocupou o ponto inferior,
fazendo-a flutuar.

Nesse ponto, um deus — não se sabe qual — tratou de empregar seus bons ofícios para arranjar e dispor as coisas na Terra. Determinou aos rios e lagos seus lugares, levantou montanhas, escavou vales, distribuiu os bosques, as fontes, os campos férteis e as áridas planícies, os peixes tomaram posse do mar, as aves, do ar e os quadrúpedes, da terra. Tornara-se necessário, porém, um animal mais nobre, e foi feito o Homem. Não se sabe se o criador o fez de materiais divinos, ou se na Terra, há tão pouco tempo separada do céu, ainda havia algumas sementes celestiais ocultas. Prometeu tomou um pouco dessa terra e, misturando-a com água, fez o homem à semelhança dos deuses. Deu-lhe o porte erecto, de maneira que, enquanto os outros animais têm o rosto voltado para baixo, olhando a terra, o homem levanta a cabeça para o céu e olha as estrelas. Prometeu era um dos titãs, uma raça gigantesca, que habitou a Terra antes do homem. Ele e seu irmão Epimeteu foram incumbidos de fazer o homem e assegurar-lhe, e aos outros animais, todas as faculdades necessárias à sua preservação. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu, de examiná-la, depois de pronta. Assim, Epimeteu tratou de atribuir a cada animal seus dons variados, de coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a um, garras a outro, uma carapaça protegendo um terceiro etc. Quando, porém, chegou a vez do homem, que tinha de ser superior a todos os outros animais, Epimeteu gastara seus recursos com tanta prodigalidade que nada mais restava. Perplexo, recorreu a seu irmão Prometeu, que, com a ajuda de Minerva, subiu ao céu e acendeu sua tocha no carro do sol, trazendo o fogo para o homem. Com esse dom, o homem assegurou sua superioridade sobre todos os outros animais. O fogo lhe forneceu o meio de construir as armas com que subjugou os animais e as ferramentas com que cultivou a terra; aquecer sua morada, de maneira a tornar-se relativamente independente do clima, e, finalmente, criar a arte da cunhagem das moedas, que ampliou e facilitou o comércio.
A mulher não fora ainda criada. A versão (bem absurda) é que Júpiter a fez e enviou-a a Prometeu e a seu irmão, para puni-los pela ousadia de furtar o fogo do céu, e ao homem, por tê-lo aceito. A primeira mulher chamava-se Pandora. Foi feita no céu, e cada um dos deuses contribuiu com alguma coisa para aperfeiçoá-la. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio, a persuasão, Apolo, a música etc. Assim dotada, a mulher foi mandada à Terra e oferecida a Epimeteu, que de boa vontade a aceitou, embora advertido pelo irmão para ter cuidado com Júpiter e seus presentes. Epimeteu tinha em sua casa uma caixa, na qual guardava certos artigos malignos, de que não se utilizara, ao preparar o homem para sua nova morada. Pandora foi tomada por intensa curiosidade de saber o que continha aquela caixa, e, certo dia, destampou-a para olhar. Assim, escapou e se espalhou por toda a parte uma multidão de pragas que atingiram o desgraçado homem, tais como a gota, o reumatismo e a eólica, para o corpo, e a inveja, o despeito e a vingança, para o espírito. Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas, infelizmente, escapara todo o conteúdo da mesma, com exceção de uma única coisa, que ficara no fundo, e que era a esperança. Assim, sejam quais forem os males que nos ameacem, a esperança não nos deixa inteiramente; e, enquanto a tivermos, nenhum mal nos torna inteiramente desgraçados. Uma outra versão é a de que Pandora foi mandada por Júpiter com boa intenção, a fim de agradar ao homem. O rei dos deuses entregou-lhe, como presente de casamento, uma caixa, em que cada deus colocara um bem. Pandora abriu a caixa, inadvertidamente, e todos os bens escaparam, exceto a esperança. Essa versão é, sem dúvida, mais aceitável do que a primeira. Realmente, como poderia a esperança, jóia tão preciosa quanto é, ter sido misturada a toda a sorte de males, como na primeira versão? Estando assim povoado o mundo, seus primeiros tempos constituíram uma era de inocência e ventura, chamada a Idade de Ouro. Reinavam a verdade e a justiça, embora não impostas pela lei, e não havia juízes para ameaçar ou punir. As florestas ainda não tinham sido despojadas de suas árvores para fornecer madeira aos navios, nem os homens haviam construído fortificações em torno de suas cidades. Espadas, lanças ou elmos eram objetos desconhecidos. A terra produzia tudo necessário para o homem, sem que este se desse ao trabalho de lavrar ou colher. Vicejava uma primavera perpétua, as flores cresciam sem sementes, as torrentes dos rios eram de leite e de vinho, o mel dourado escorria
dos carvalhos.
Seguiu-se a Idade de Prata, inferior à de Ouro, porém melhor do que a de Cobre. Júpiter reduziu a primavera e dividiu o ano em estações. Pela primeira vez o homem teve de sofrer os rigores do calor e do frio, e tornaram-se necessárias as casas. As primeiras moradas foram as cavernas, os abrigos das árvores frondosas e cabanas feitas de hastes. Tornou-se necessário plantar para colher. O agricultor teve de semear e de arar a terra, com ajuda do boi. Veio, em seguida, a Idade de Bronze, já mais agitada e sob a ameaça das armas, mas ainda não inteiramente má. A pior foi a Idade do Ferro. O crime irrompeu, como uma inundação; a modéstia, a verdade e a honra fugiram, deixando em seus lugares a fraude e a astúcia, a violência e a insaciável cobiça. Os marinheiros estenderam as velas aos ventos e as árvores foram derrubadas nas montanhas para servir de quilhas dos navios e ultrajar a face do oceano. A terra, que até então fora cultivada em comum, começou a ser dividida entre os possuidores. Os homens não se contentaram com o que produzia a superfície: escavou-se então a terra e tirou-se do seu seio os minérios e metais. Produziu-se o danoso ferro e o ainda mais danoso ouro. Surgiu a guerra, utilizando-se de um e de outro como armas; o hóspede não se sentia em segurança em casa de seu amigo; os genros e sogros, os irmãos e irmãs, os maridos e mulheres não podiam confiar uns nos outros. Os filhos desejavam a morte dos pais, a fim de lhes herdarem a riqueza; o amor familiar caiu prostrado. A terra ficou úmida de sangue, e os deuses a abandonaram, um a um, até que ficou somente Astréia, que, finalmente, acabou também partindo. Vendo aquele estado de coisas, Júpiter indignou-se e convocou os deuses para um conselho. Todos obedeceram à convocação e tomaram o caminho do palácio do céu. Esse caminho pode ser visto por qualquer um nas noites claras, atravessando o céu, e é chamado de Via Láctea. Ao longo dele ficam os palácios dos deuses ilustres; a plebe celestial vive à parte, de um lado ou de outro.
Dirigindo-se à assembléia, Júpiter expôs as terríveis condições que reinavam na Terra e encerrou as suas palavras anunciando a intenção de destruir todos os seus habitantes e fazer surgir uma nova raça, diferente da primeira, que seria mais digna de viver e saberia melhor cultuar os deuses. Assim dizendo, apoderou-se de um raio e já estava prestes a atirá-lo contra o mundo, destruindo-o pelo fogo, quando atentou para o perigo que o incêndio poderia acarretar para o próprio céu. Mudou, então, de ideia, e resolveu inundar a terra. O vento norte, que espalha as nuvens, foi encadeado; o vento sul foi solto e em breve cobriu todo o céu com escuridão profunda. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se com fragor; torrentes de chuva caíram; as plantações inundaram-se; o trabalho de um ano do lavrador pereceu em uma hora. Não satisfeito com suas próprias águas, Júpiter pediu a ajuda de seu irmão Netuno. Este soltou os rios e lançou-os sobre a terra. Ao mesmo tempo, sacudiu-a com um terremoto e lançou o refluxo do oceano sobre as praias. Rebanhos, animais, homens e casas foram engolidos e os templos, com seus recintos sacros, profanados. Todo edifício que permanecera de pé foi submergido e suas torres ficaram abaixo das águas. Tudo se transformou em mar, num mar sem praias. Aqui e ali, um indivíduo refugia-se num cume e alguns poucos, em barcos, apoiam o remo no mesmo solo que ainda há pouco o arado sulcara. Os peixes nadam sobre os galhos das árvores; a âncora se prende num jardim. Onde recentemente os cordeirinhos brincavam, as focas cabriolam desajeitadamente. O lobo nada entre as ovelhas, os fulvos leões e os tigres lutam nas águas. A força do javali de nada lhe serve, nem a ligeireza do cervo. As aves tombam, cansadas, na água, não tendo encontrado terra onde pousar. Os seres vivos que a água poupara caem como presas da fome. 
De todas as montanhas, apenas o Parnaso ultrapassa as águas. Ali, Deucalião e sua esposa Pirra, da raça de Prometeu, encontram refúgio — ele é um homem justo, ela, uma devota fiel dos deuses. Vendo que não havia outro vivente além desse casal, e lembrando-se de sua vida inofensiva e de sua conduta piedosa, Júpiter ordenou aos ventos do norte que afastassem as nuvens e mostrassem o céu à terra e a terra ao céu. Também Netuno ordenou a Tritão que soasse sua concha determinando a retirada das águas. As águas obedeceram; o mar voltou às suas costas e os rios, aos seus leitos. Deucalião assim se dirigiu, então, a Pirra: "Ó esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiramente pelos laços do parentesco e do casamento, e agora por um perigo comum, pudéssemos nós possuir o poder de nosso antepassado Prometeu e renovar a raça, como ele fez, pela primeira vez! Como não podemos, porém, dirijamo-nos àquele templo e indaguemos dos deuses o que nos resta fazer." Entraram num templo coberto de lama e aproximaram-se do altar, onde nenhum fogo crepitava. Prostraram-se na terra e rogaram à deusa que os esclarecesse sobre a maneira de se comportar naquela situação miserável. "Saí do templo com a cabeça coberta e as vestes desatadas e atirai para trás os ossos de vossa mãe" — respondeu o oráculo. Estas palavras foram ouvidas com assombro. Pirra foi a primeira a romper o silêncio: "Não podemos obedecer; não vamos nos atrever a profanar os restos de nossos pais." Seguiram pela fraca sombra do bosque, refletindo sobre o oráculo. Afinal, Deucalião falou: "Se minha sagacidade não me ilude, poderemos obedecer à ordem sem cometermos qualquer impiedade. A terra é a mãe comum de nós todos; as pedras são seus ossos; poderemos lançá-las para trás de nós; e creio ser isto que o oráculo quis dizer. Pelo menos, não fará mal tentar." Os dois velaram o rosto, afrouxaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas para trás. As pedras (maravilha das maravilhas!) amoleceram e começaram a tomar forma. Pouco a pouco, foram assumindo uma grosseira semelhança com a forma humana, como um bloco ainda mal acabado nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo que havia sobre elas transformaram-se em carne; a parte pétrea transformou-se nos ossos; as veias ou veios da pedra continuaram veias, conservando seu nome e apenas mudando sua utilidade. As pedras lançadas pelas mãos do homem tornaram-se homens, as lançadas pela mulher tornaram-se mulheres. Era uma raça forte e bem disposta para o trabalho como até hoje somos, mostrando bem a nossa origem.
A comparação de Eva com Pandora é muito óbvia para ter escapado a Milton, que a apresenta no Livro IV do Paraíso Perdido:

Mais bela que Pandora a quem os deuses
Cumularam de todos os seus bens
E, ah! bem semelhante na desgraça,
Quando ao insensato filho de Jafete
Por Hermes conduzido, a humanidade
Tomou, com sua esplêndida beleza,
E caiu a vingança sobre aquele
Que de Jove furtou o sacro fogo

Prometeu e Epimeteu eram filhos de Iapeto que Milton mudou em Jafete. Prometeu tem sido um assunto preferido dos poetas. Representa o amigo da humanidade, que se colocou em sua defesa, quando Jove se irritou contra ela, e que ensinou aos homens a civilização e as artes. Ao assim fazer, contudo, desobedeceu à vontade de Júpiter e tornou-se ele próprio alvo da ira do rei dos deuses e dos homens. Júpiter mandou acorrentá-lo num rochedo do Cáucaso, onde um abutre lhe arrancava o fígado, que se renovava, à medida que era devorado. Essa tortura poderia terminar a qualquer momento, se Prometeu se resignasse, a submeter-se ao seu opressor, pois era senhor de um segredo do qual dependia a estabilidade do trono de Jove e, se o tivesse revelado, imediatamente teria obtido graça. Não se rebaixou a fazê-lo, porém. Tornou-se, assim, símbolo da abnegada resistência a um sofrimento imerecido e da força de vontade de resistir à opressão. Tanto Byron como Shelley abordaram esse tema. São de Shelley os seguintes versos:

Titã, a cujos olhos imortais
As dores dos mortais
Mostram-se em sua crua realidade,
Como algo que os próprios deuses vêem,
Que prêmio mereceu tua piedade?
Um profundo e silente sofrimento,
O abutre, a corrente, a rocha,
E o orgulho de sofrer sem um lamento.

Byron faz alusão ao mesmo episódio em sua "Ode a Napoleão Bonaparte":

Como o ladrão do fogo celestial
Resistirás sem medo
E compartilharás com o imortal
O abutre e o rochedo?
- - - -



1. Do motivo
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la; o que me fez diferi-la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir.
2. Do rompimento das antigas ideias
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seria-mente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que examine cada uma em particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar- me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.
3. Os sentidos
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos 
ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de 
prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
4. Parte dos sentidos é indubitável
Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare e esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.
5. Sonho e realidade
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
6. Físico indubitável
Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas particularidades, a saber, que abrimos os olhos que mexemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenham com o maior artifício em representar sereias e sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se porventura sua imaginação for assaz extravagante para inventar algo de tão novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante e que assim sua obra nos represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com que eles a compõem devem ser verdadeiras.
7. Natureza corpórea
E pela mesma razão, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e outras 
semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais 
simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos 
do que da mistura de algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisas que 
residem em nesse pensamento, quer verdadeiras e reais, quer fictícias e fantásticas. Desse gênero 
de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua extensão; juntamente com a figura das coisas 
extensas, sua quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que estão, o 
tempo que mede sua duração e outras coisas semelhantes.
8. Matemática indubitável
Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências dependentes da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas; mas que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza. 
9. Deus não engana porque é bom
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele mo permita.
10. Enganar-se é imperfeição
Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a 
acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e 
suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de 
qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a 
algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma 
contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de 
imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será 
provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a 
responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha 
crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma 
inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de 
sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e 
que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se 
desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências.
11. Questões confiáveis
Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de lembrar-me delas; pois essas antigas e ordinárias opiniões ainda me voltam amiúde ao pensamento, dando-lhes a longa e familiar convivência que tiveram comigo o direito de ocupar meu espírito mau grado meu e de tornarem-se quase que senhoras de minha crença. E jamais perderei o costume de aquiescer a isso e de confiar nelas, enquanto as considerar como são efetivamente, ou seja, como duvidosas de alguma maneira, como acabamos de mostrar, e todavia muito prováveis, de sorte que se tem muito mais razão em acreditar nelas do que em negá-las. Eis por que penso que me utilizarei delas mais prudentemente se, tomando partido contrário, empregar todos os meus cuidados em enganar-me a mim mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo de tal modo sopesado meus prejuízos, eles não possam inclinar minha opinião mais para um lado do que para o outro, e meu juízo não mais seja doravante dominado por maus usos e desviado do reto caminho que pode conduzi-lo ao conhecimento da verdade. Pois estou seguro de que, apesar disso, não pode haver perigo nem erro nesta via e de que não poderia hoje aceder demasiado à minha desconfiança, posto que não se trata no momento de agir, mas somente de meditar e de conhecer. 
12. Deus enganador
Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo. 
13. Aceitável enganação
Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo de que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranqüilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas.


Resumo de:
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2011.
- - -