Nasceu, na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito.
Porém - diz um dr. Mereje - não foi o primeiro. Em São Paulo, há 7 anos,
nasceu também uma criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como
se fora um coração postiço."
Como se fora um coração
postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha
nascido às cinco horas. Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos,
diria:
“...a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam...”
Madrugada
paulistana. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira
fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os
postes. Os sinais das esquinas - vermelhos, amarelos, verdes - verdes,
amarelos, vermelhos - borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho.
Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso
no Viaduto do Chá contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém
nunca jamais contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas
flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes,
artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento
tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe.
Passam homens de cara lavada, pobres com embrulhos de jornais debaixo do
braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas.
Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o
coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado,
com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você
devia vir cá fora receber o beijo da madrugada. Vamos andar pelas
praças desertas, onde as estátuas molhadas cabeceiam de sono. Menino do
coração fora do peito, os primeiros bondes estrondam. Vamos ouvir de
perto esses barulhos da madrugada.
6
horas. O coração fora do peito bate docemente. 7 horas - o coração
bate. .. 8 horas - que sol claro, que barulho na rua! - o coração
bate...
9 horas - morreu o menino do coração fora do
peito. Fez bem morrer, menino. O dr. Mereje resmunga: "Filho de pais
alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o dr. Mereje. Ele é um médico,
você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais
alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano.
Mas que anjinho engraçado! - diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está
no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos
olham espantados. O que é isso, "seu" paulista? Mas o menino do coração
fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua
história: "o dr. Mereje disse que..." - mas não conta. Está rindo, mas
está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz:
Ora,
pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse
ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista
de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse â luz,
ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do
peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança...
Os anjinhos todos do limbo perguntaram:
Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer?
O anjinho respondeu:
Eu
vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro
do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele,
ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar
fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa.
Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:
E
às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e
no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não
tem coração nenhum. "E quando eu nasci, o dr. Mereje olhou meu coração
livre, batendo, feito uma rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o
que dizia: "parece um coração postiço". Os homens todos, minha gente,
são assim como o dr. Mereje.
Os anjinhos estavam cada
vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e
mocinho de cinema, e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava
aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho
dormir sono sossegado, dr. Mereje!
BRAGA, Rubem. Para gostar de ler. 2.ed. São Paulo: Editora Ática. 2010
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