1. Do motivo
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que
depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão
mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente,
uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então
dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se
quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas,
parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade
que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu
estivesse mais apto para executá-la; o que me fez diferi-la por tão
longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse
ainda em deliberar o tempo que me resta para agir.
2. Do rompimento das antigas ideias
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que
consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei
seria-mente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas
opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar
que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma
vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente
impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e
indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o
menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a
rejeitar todas. E, para isso, não é necessário que examine cada uma em
particular, o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos
alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício,
dedicar- me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as
minhas antigas opiniões estavam apoiadas.
3. Os sentidos
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos
ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de
prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
4. Parte dos sentidos é indubitável
Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às
coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas
outras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as
conhecêssemos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui,
sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as
mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas
mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare e
esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado
pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis
quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando
estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de
vidro. Mas quê? São loucos e eu não seria menos extravagante se me
guiasse por seus exemplos.
5. Sonho e realidade
Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que
tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas
coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em
vigília. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava
neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora
estivesse inteiramente nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é
com olhos adormecidos que contemplo este papel; que esta cabeça que eu
mexo não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que
estendo esta mão e que a sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão
claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente
nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por
semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão
manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas
assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono,
que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz
de me persuadir de que estou dormindo.
6. Físico indubitável
Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos e que todas essas
particularidades, a saber, que abrimos os olhos que mexemos a cabeça,
que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas
ilusões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso
corpo, não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar
que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros
e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e
verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber,
olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias,
mas verdadeiras e existentes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo
quando se empenham com o maior artifício em representar sereias e
sátiros por formas estranhas e extraordinárias, não lhes podem, todavia,
atribuir formas e naturezas inteiramente novas, mas apenas fazem certa
mistura e composição dos membros de diversos animais; ou então, se
porventura sua imaginação for assaz extravagante para inventar algo de
tão novo, que jamais tenhamos visto coisa semelhante e que assim sua
obra nos represente uma coisa puramente fictícia e absolutamente falsa,
certamente ao menos as cores com que eles a compõem devem ser
verdadeiras.
7. Natureza corpórea
E pela mesma razão, ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos e outras
semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais
simples e mais universais, que são verdadeiras e existentes; de cuja mistura, nem mais nem menos
do que da mistura de algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisas que
residem em nesse pensamento, quer verdadeiras e reais, quer fictícias e fantásticas. Desse gênero
de coisas é a natureza corpórea em geral, e sua extensão; juntamente com a figura das coisas
extensas, sua quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o lugar em que estão, o
tempo que mede sua duração e outras coisas semelhantes.
8. Matemática indubitável
Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a
Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências dependentes
da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas; mas
que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências desta natureza, que
não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem
muito em se elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de
certo e indubitável. Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja
dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado
nunca terá mais do que quatro lados; e não parece possível que verdades
tão patentes possam ser suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.
9. Deus não engana porque é bom
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um
Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora,
quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja
nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma
grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de
todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira
diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os
outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior
certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as
vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados
de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que
se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deus não
tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é
considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade
fazer-me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também
ser-lhe contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto,
não posso duvidar de que ele mo permita.
10. Enganar-se é imperfeição
Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a
acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e
suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de
qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a
algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma
contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de
imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será
provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a
responder, mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em minha
crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar atualmente, não por alguma
inconsideração ou leviandade, mas por razões muito fortes e maduramente consideradas: de
sorte que é necessário que interrompa e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e
que não mais lhes dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se
desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências.
11. Questões confiáveis
Mas não basta ter feito tais considerações, é preciso ainda que cuide de
lembrar-me delas; pois essas antigas e ordinárias opiniões ainda me
voltam amiúde ao pensamento, dando-lhes a longa e familiar convivência
que tiveram comigo o direito de ocupar meu espírito mau grado meu e de
tornarem-se quase que senhoras de minha crença. E jamais perderei o
costume de aquiescer a isso e de confiar nelas, enquanto as considerar
como são efetivamente, ou seja, como duvidosas de alguma maneira, como
acabamos de mostrar, e todavia muito prováveis, de sorte que se tem
muito mais razão em acreditar nelas do que em negá-las. Eis por que
penso que me utilizarei delas mais prudentemente se, tomando partido
contrário, empregar todos os meus cuidados em enganar-me a mim mesmo,
fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que,
tendo de tal modo sopesado meus prejuízos, eles não possam inclinar
minha opinião mais para um lado do que para o outro, e meu juízo não
mais seja doravante dominado por maus usos e desviado do reto caminho
que pode conduzi-lo ao conhecimento da verdade. Pois estou seguro de
que, apesar disso, não pode haver perigo nem erro nesta via e de que não
poderia hoje aceder demasiado à minha desconfiança, posto que não se
trata no momento de agir, mas somente de meditar e de conhecer.
12. Deus enganador
Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da
verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que
poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o
céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas
exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve
para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo
absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue,
desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter
todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse
pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao
conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender
meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha
crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os
ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja,
nunca poderá impor-me algo.
13. Aceitável enganação
Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me
insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um
escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a
suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e
conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado,
assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas
opiniões e evito despertar dessa sonolência, de medo de que as vigílias
laboriosas que se sucederiam à tranqüilidade de tal repouso, em vez de
me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade,
não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que
acabam de ser agitadas.
Resumo de:
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes. 2011.
Nenhum comentário