Não é de hoje que a Literatura vem tentando ser conceituada pelos mais
diversos tipos de pessoas com instrução. Por mais tentativas que tenham
sido feitas, ainda está em aberto o problema porque nunca podemos falar
de definição, e sim de conceito: a definição pertence ao
ramo da ciência, onde tudo necessita ser exatamente descrito e enunciado
em suas características à rigor. O conceito diz respeito ao caráter
particular de um objeto, decorrendo de impressões mais ou menos
subjetivas.
Mesmo para Platão e Aristóteles, o problema conceitual de Literatura esteve presente. Para Aristóteles:
"A epopeia, a tragédia, e ainda a comédia, a poesia ditirâmbica e a
maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral,
imitações."
Ou resumidamente, a Literatura é uma imitação ("mímesis") da realidade.
Analisando a Poética, Alfonso Reyes admite três interpretações para a
palavra empregada por Aristóteles, mas garante que a mais importante e
mais aplicável é a terceira:
"Que se refere à expressão, por meio da arte, do tipo que o artista tem na alma."
Para chegar ao conceito de Literatura, devemos partir de reflexões filosóficas. A primeira ideia diz:
"A Literatura, do mesmo modo que as demais Artes e as Filosofias, as
Religiões e as Ciências, é uma forma de conhecimento. Bem, visto
estarmos pretendendo compreender a extensão e o significado da palavra
Literatura, havemos de nos até à palavra "conhecimento", que é o segundo
termo da igualdade. Para tanto, perguntamo-nos: qual é o objeto do
conhecimento? e que é conhecer? Na verdade, tudo é objeto do
conhecimento, seja pertencente ao plano macrocósmico (o Universo), seja
pertencente ao plano microcósmico (o Homem), seja imaterial, seja
sensível, seja inteligível.
Isto posto, compreendemos que as Artes, as Filosofias, as Religiões e as
Ciências constituem as quatro formas fundamentais de conhecer. Diríamos
de grosso modo que as Filosofias e as Religiões situam seu campo de
estudo no mundo não-físico.
O problema já posto se agrava se levarmos em conta a questão seguinte:
qual instrumento de que se valem para expressar o conhecimento essas
formas de conhecer. Comecemos por entender o que vem a ser a imagem
mental de conhecer: quando um indivíduo cognoscente aprende o conteúdo
cognoscível, transferindo-o para sua consciência, diz-se que a
aprendizagem se efetivou, mas foi incompleta. Para que o processo seja
completo, é necessário que o indivíduo externalize-o para fora de sua
esfera mental a fim de que outros possam usufruir do conhecimento. Essas
projeções e representações recebem o nome de signos (ou
símbolos), isto é, sinais indicativos da relação gnoseológica. Os signos
podem ser, quanto à forma, palavras e não-palavras (som, volume,
movimento, espaço, números, etc.). E quanto à valência, podem ser
univalentes ou polivalentes, isto é, podem conter um só sentido ou
vários sentidos. Podem ainda ser divididos em signos conotativos e signos denotativos.
Som - Música
Cor - Pintura
Movimento - Dança
Volume - Escultura
Espaço - Arquitetura
Palavra - Literatura
As Artes empregam signos polivalentes, por isso cada pessoa sente de uma
forma pessoal e intransferível os efeitos de uma sonata de Beethoven,
uma tela de Van Gogh, um conto de Machado de Assis, uma construção de
Oscar Niemeyer. Mas a polivalência dos signos das Artes é tão mutacional
que os sentimentos dos receptores influenciam avidamente a percepção. A
forma de expressão da Literatura não é exclusiva dela:as Ciências, as
Filosofias e as Religiões igualmente a emprega. O que varia é o modo de
empregá-la.
Assim, já podemos afirmar que a Literatura é um tipo de conhecimento que
é expresso de modo polivalente. Essas palavras representam, de forma
deformada, a realidade, porque é através do intermédio delas que
encarnamos um conteúdo ideal que não pode expressar-se de outra maneira.
Esse conteúdo ideal refere-se a pessoas, não a coisas: não é a
"revelação" do real físico que lhe interessa, mas tudo que pertence á esfera do humano O
desprezo por copiar o real significa desviar-se dele, deformá-lo,
mentir, "fingir" a realidade ou inventar uma nova mais autêntica. A
ficção é um universo particular onde se reúnem as percepções
distorcidas. Por isso, podemos dizer que Literatura é ficção. E
se entendermos a ficção como um composto de imagens deformadas e
transfundidas no mundo real, podemos dizer que ficção e imaginação se
equivalem, e um termo pode ser perfeitamente trocado pelo outro.
Daí vem que a Literatura emprega termos polivalentes como expressão de
conteúdos da imaginação ou da ficção. Em outras palavras, a imaginação é
um tipo de conhecimento expresso por via oral e/ou escrita, de valor
multívoco e individual:
A literatura é a expressão de conteúdos da ficção ou da imaginação por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.
Vale lembrar que para ser um texto literário, deve-se preencher alguns
requisitos: a questão de valor já é outra história. Desde um soneto
comum escrito por um adolescente sonhador, publicado num jornal
acadêmico, até a Divina Comédia, tudo é Literatura. Pode ser que o
soneto necessite de valor artístico ou de qualidade, mas irá satisfazer
aquelas condições implícitas ou explícitas nas considerações feitas até
agora.
Destas considerações, pode-se inferir que:
- O Jornalismo, a Oratória, a Pedagogia, a História, os relatos de viagens, etc., por mais brilhantes que sejam, escapam do terreno da Literatura, senão ocasional e parcialmente, desde que neles são empregados signos de natureza polivalente. Sendo formas híbridas, oscilam entre a Ciência e a Literatura.
- Quanto ao Teatro, a questão é menos clara, mas nem por isso abala o rigor posto até aqui sobre o conceito de Literatura: o Teatro só interessa à Literatura, só é Literatura, enquanto texto escrito, jamais enquanto obra representada. Mas todos sabem que Teatro só é Teatro quando no palco, encenado, pois no papel a peça ainda não é Teatro. Pouco falta para que o Teatro se desprenda e adquira status de arte independente, com uma linguagem própria. Desde prisma, o dilema se desfaz: adquirindo o status de arte autônoma, o texto teatral iria passar a ser apenas o guia para a encenação, da mesma forma que um roteiro para um filme.
- Como consequência das observações anteriores, podemos concluir que somente a poesia, o conto, a novela e o romance pertencem à Literatura, por satisfazerem àquele requisito básico: Literatura é ficção expressa por palavras polivalentes.
Em suma: a palavra constitui o grande veículo de expressão de
conhecimento que o homem tem das coisas. Daí vem que a Literatura faz
uso da palavra com a multivocidade típica, seja uma arte dona de um
privilégio que distingue os homens dos animais irracionais. A palavra,
que é o meio mais próprio de comunicação dos homens, é atributo
exclusivo da Literatura: dentre as Artes, ela é a única que a emprega
como meio de expressão, e mais, o faz polivalentemente. Desta forma, a
arte universal não é a Música, mas a Literatura.
A linguagem musical certamente pode ser entendida sobre todas as
fronteiras dos povos e nações, mas é apenas traduzível em linguagem
literária. Na verdade, só a Literatura pode expressar aquele redemoinho
profundo que constitui a essência e a existência do homem posto em face
dos grandes enigmas do universo, da natureza e de sua mente.
Por fim, se partirmos da ideia que o homem é tanto mais adaptado à vida
quanto mais experiências acumular, tiremos a conclusão de que não
podemos ser tudo ao mesmo tempo, temos uma só vida, é impossível voltar
atrás, etc., etc. Então, que resta ao homem? Resta-lhes experienciar a
vivência alheia, inclusive aquela acumulada ao longo da evolução
histórica da Humanidade. É exatamente por isso que se vai ao encontro de
depósitos literários como museus, monumentos, livros, etc. Do
contrário, era preciso que cada indivíduo começasse do zero. Ora, a
Literatura fornece um tipo único de experiência, porque trata com a
imaginação, que produz formas de vida possíveis e fora da nossa esfera
cotidiana. Essa experiência colhida no contato com a imaginação
enriquece nossa maneira de ver os problemas cotidianos.
E assim como a saúde psicológica tem de ser conservada no decorrer da
própria vida, mediante a "alimentação" em nível de símbolos afetivos:
pela Literatura, que nos conduz a novas fontes de fruição; pela
Literatura, que nos faz sentir que não estamos sozinhos nessa miséria;
pela Literatura, que expõe nossos problemas a uma nova luz; pela
Literatura, que sugere novas possibilidades e abre novos campos de
experiências.
Resumo de:
MOISES, Massaud. A análise literária. 17.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2005.
Ilustração por http://biblioklept.org
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