Cada ser humano pode diferenciar a percepção do espírito: quando uma
pessoa sente a dor do calor excessivo ou prazer do calor moderado, e
quando depois recorda em sua memória essa sensação ou a antecipa por
meio da imaginação. Essas faculdades podem imitar ou copiar as
percepções de sentido, mas nunca podem alcançar integralmente a força e a
vivacidade da sensação original. O máximo que podemos dizer é que
imaginamos uma sensação tão fortemente que quase podemos senti-la. Mas, a
menos que seu espírito esteja perturbado pela loucura, nunca chegam ao
tal grau de vivacidade que não seja possível discernir as percepções dos
objetos.
Podemos observar uma distinção entre todas as percepções de espírito.
Um homem que sofre de um ataque de cólera é estimulado de maneira muito
diferente de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se alguém diz que
outro está amando, logo se forma uma concepção precisa de sua situação,
mas nunca se pode confundir esta ideia com as reais sensações da
paixão.
Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso
pensamento é um reflexo fiel e copia dos seus objetos com veracidade,
porém as cores e percepções são fracas perante aquelas originais. Podemos, então, dividir todas as percepções de espírito em duas classes
ou espécies: as menos fortes e menos vivas são chamadas de pensamentos
ou ideias. Já as impressões são quando as percepções são mais vivas e
fortes, quando ouvimos vemos, sentimos, amamos e odiamos. As impressões e
ideias podem se diferenciar quando o indivíduo reflete sobre as
proposições acima.
À primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento
humano, que não apenas escapa a toda autoridade e poder do homem, mas
também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da
realidade. Apesar de o corpo arrastar-se confinado em um só planeta, o
pensamento pode transportar-nos num instante à regiões mais distantes do
Universo. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque
não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica
absoluta contradição.
Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir liberdade ilimitada,
podemos verificar através de um exame muito minucioso que ele está
realmente limitado dentro de um algo muito reduzido e que todo poder
criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, transpor,
aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos
sentidos e pela experiência. Todos os materiais derivam de nossas
sensações externas ou internas, mas a mistura e composição deles
dependem do espírito e da vontade.
Todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas.
Para prová-lo, vamos nos usar de dois argumentos. Primeiro, se analisarmos
nossos pensamentos ou ideias, por mais compostos que sejam, verificamos
que sempre se reduzem a ideias tão simples como eram as cópias das
sensações precedentes. Mesmo as ideias que parecem mais distantes, são,
na verdade, em algum ponto derivada delas.
A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e
bom, nasce da reflexão sobre as operações de novo próprio espírito,
quando aumentamos indefinidamente as qualidades da bondade e sabedoria.
Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive um ser humano de uma
classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade de formular
ideias a respeito. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um
surdo dos sons. Ao abrir essas portas, no entanto, verificamos o
nascimento de ideias e a pessoa não terá mais dificuldade para
concebê-la. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos
sentidos dos quais não temos noção, porque a ideia desses sentidos nunca
nos foram apresentadas pela única maneira por que uma ideia pode ter
acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais.
Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é
absolutamente impossível que as ideias nasçam espontaneamente. Acredito
que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores diferentes
que penetram pelos olhos são realmente diferentes uma das outras, embora
pareçam. Se isso é verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve ser
igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz
uma ideia diversa, independente da outra. Suponhamos então que uma
pessoa gozou durante trinta anos de sua perfeita visão e se tornou
familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz
particular de azul, que nunca teve a sorte de ver. Coloquemos então
todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, de frente
para aquela pessoa, decrescendo do mais escuro ao mais claro. Certamente
ela perceberá o vazio onde falta este matiz, terá o sentimento de que
há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais do
que em qualquer outro. Ora, pergunto-lhe se seria possível, através de
sua imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à ideia desse
matiz em particular seus sentidos não lhe forneceram.
Todas as ideias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e
obscuras; o espírito tem sobre elas um escasso controle; elas são
apropriadas para serem confundidas com outras ideias semelhantes, e
somos levados a imaginar que uma ideia determinada está aí anexada se, o
que ocorre com frequência, empregamos qualquer termo sem lhe dar
significado exato. Pelo contrário, todas as impressões, isto é, as
sensações, externas ou internas, são fortes e vivas; seus limites são
determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-las.
De que impressão é derivada aquela suposta ideia?
Resumo de:
HUME, David. Os pensadores. 1.ed. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1999.
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